13 de novembro de 2014

Com Afeto



Já é tarde e a pequena Rebeca precisa dormir, pois nas manhãs de quarta, na escola, a professora sempre pede para que as crianças façam os exercícios de matemática encontrados ao fim dos capítulos do livro didático e, como nunca foi tão boa com os números, estar com sono não ajudará muito a estudiosa garota. Entretanto, como de costume em todas as noites antes de ir pra cama, a jovem mocinha puxa a mãe pelo braço e a acompanha até seu quarto mal iluminado, assiste-a a se esticar pela cama e a cobre com o edredom estampado com personagens de desenho animado de sempre. Ao lado da fria cama de casal há um criado mudo carinhosamente apelidado pela solitária senhorita como Zê. Sobre o móvel há um desgastado livro de contos infantis, velho companheiro noturno da mãe da menina desde que seu marido, o qual sua linda filha nunca chegou a conhecer, partiu com uma jovem e esbelta rapariga sem deixar sequer um bilhete na porta da geladeira.
Sorridente, Rebeca retira com leveza os longos cabelos do rosto de sua mãe – que fecha os olhos – e os prende atrás das orelhas que logo se atentam a ouvir a história da noite. A garota então pede para que sua mãe ordene que Zê não se aborreça ao ficar temporariamente sem seu amigo de papel. Ordens dadas e obedecidas, sorrisos nos rostos e, com sua voz suave e oscilante, a garota começa a narrar:

Em uma pequena e muito distante terra havia um rei muito poderoso. Ele era o governador do pão, das terras, das armas, das águas, dos homens e de todos os sentimentos. Tudo ali funcionava ao sabor das decisões e desejos da majestade e da família real, protegidos por barreiras e mais barreiras de soldados dentro e fora das muralhas do castelo.

Certo dia ao perceber que os homens não estavam mais seguindo à risca a todas as suas supremas ordens, a majestade decidiu investigar a causa de tamanho caos naquele pacato lugar.

Nesse momento a mãe de Rebeca interrompe inquieta, sugerindo o que havia causado a desordem no reino:
           "Foram as bruxas malvadas que queriam tomar o castelo! Aposto que elas lançaram o feitiço da desordem naquele povo."
            Impaciente, a garota disse que aquele conto não era sobre fadas e bruxas como o do dia de ontem, pediu para que se contivesse daquela euforia e que esperasse o desenrolar da história para que pudesse tirar suas conclusões. Logo se seguiu a narrativa.
           
            Não foi difícil para o rei diagnosticar as causas da aparente doença - como dizia a majestade - que se espalhara e já contaminava boa parte daquela pacata gente trabalhadora, pois não se falava em outra coisa em todo canto senão de dois novos sentimentos que Simão, o alquimista, havia descoberto recentemente com a ajuda de sua esposa Helena, a comerciante. Sentimentos tais batizados pelos dois como Amor e Empatia. Tal como fogo e pólvora, quando unidos esses dois novos sentimentos eram poderosíssimos.

            Assim como todos os demais habitantes daquela terra o alquimista trabalhava para o rei, com a tarefa principal de moldar e controlar sentimentos ao bem querer da corte – como era feito com a paz, por exemplo – e criando novos sentimentos para serem distribuídos por todo o reino, como frequentemente acontecia com o sentimento do medo, distribuído de modo gratuito e obrigatório diariamente aos padeiros em forma de fermento em pó – em embalagens todas brancas com desenhos de pombos igualmente brancos sob o selo real - a ser misturado à farinha de trigo. Dizem os historiadores que os pães naquele lugar eram os mais belos, saborosos e, por tudo isso, os mais viciantes já vistos em toda a história.

            É sabido que o rei ficou infinitamente furioso com Simão e que chegou ao ponto de cogitar a condenação do pobre coitado à forca ou ao cárcere perpétuo – costumeiras punições do antigos reis, seu pai e seu avô, para quaisquer indivíduos que abalassem a ordem no reino – por espalhar tais pragas de tamanha periculosidade pelo seu valioso reino. Entretanto, ao perceber que tudo não se passava de um deslize do curioso alquimista e que poderia ainda precisar do mesmo para conter aquela febre, o rei, que não era bobo, disse que perdoaria o pobre homem contanto que ele se dispusesse a ajudar a conter aquelas ameaças. Trato feito, saudações à majestade: era hora do café real. Meio sem lugar naquele exuberante palácio, o maltrapilho alquimista teve que recusar o convite para o glamoroso banquete, já que estava a testar uma dieta especial de bases homeopáticas, se limitando a umas poucas ervas e especiarias preparadas por sua esposa, a fim de se curar de um mal crescente que lhe causava insônia.

           Simão sabia lidar como ninguém com os sentimentos e seus reflexos nos homens. Sabia o bastante para criá-los, controlá-los... Mas jamais destruí-los. Era impossível. Uma vez experimentado o sentimento criava um espécie de vida própria e passava a existir para sempre. Mas a ordem do rei era clara: fazer com que a ordem e a obediência total fossem restabelecidas naquele lugar. O alquimista sabia que seria difícil realizar os desejos da corte dessa vez, mas não lhe parecia impossível. Voltou então ao seu laboratório de araque para pesquisar um pouco mais.

           Depois de muita experimentação e observação o homem de ciência percebeu que os dois sentimentos só tinham aquele poder ameaçador quando atuavam juntos em um indivíduo ou grupo. Quando separados poderiam ser facilmente manipulados e distorcidos. Logo contou sua mais recente descoberta à sua querida esposa Helena. Faltava agora separar os sentimentos que ele havia espalhado gratuitamente misturando-os ao café moído vendido na feira. Essa tarefa sim era impossível, pois o amor fora espalhado em forma de um novo e puro sabor de café enquanto a empatia estava em forma de um novo e suave aroma. Não havia maneiras para separá-los, sabor e aroma. E dizia o homem cabreiro que quem já havia provado aquela combinação poderosa jamais a esqueceria.

            Foi então que subitamente surgiu à Helena uma inusitada ideia: “Que se lance então um novo café de sabor mais marcante, cheiro mais forte e viciante, de embalagens hipnotizantes de tão belas e que se lance com preços que variam de acordo com o nível de amor que se queira alcançar, deixando assim a empatia de lado. Diga por toda parte que esse é o verdadeiro café do amor, divulgue a todos no reino que a novidade ficou ainda melhor. Contratem músicos para que exaltem a pureza e a qualidade do café, chame os mais famosos poetas para criarem e recitarem poemas e mais poemas sobre damas enamoradas correndo por cafezais, os mais exuberantes atores para que romantizem peças e mais peças no grande teatro central. Vendam esse café a qualquer custo!”.

            Desta vez era o rei quem obedecia às ordens da sábia Helena, assim como Simão Já fazia. O alquimista se pusera rapidamente a fabricar o novo café, agora sem empatia – que estaria privada aos poucos que ainda se lembram do seu suave aroma de humanidade – enquanto a majestade se pôs a fazer com que tudo funcionasse de acordo com o sugerido pela forte mulher. Não bastaram mais que duas semanas para que o novo café caísse no gosto de todo aquele sofrido povo. O alvoroço em torno do novo produto foi tão grande e tão estrondoso foi o sucesso daquela estratégia que até mesmo quem nunca tomava café passou a adorar àquela prazerosa sensação de alegria que se tinha ao tomar a bebida. Todos ali queriam o café. Uns queriam muito, outros um pouco menos, mas, no geral, ninguém queria viver sem experimentar os prazeres que um bom café prometia.

            Finalmente a ordem voltou a reinar acima de tudo naquela distante terra e a paz, por fim, fora posta em seu devido lugar. Dizem os historiadores que nada mais abalou o espelho d’água sobre aquela terra que se afogava em amores naqueles tempos secos de empatia. Diz-se também que alguns dos poetas que ali viviam e escreviam sobre o café que provaram antes do grande alvoroço, sobre o sabor que lhes adoçava a língua junto ao aroma único que cheirava à pureza da infância, foram esmagados um a um pelo sufocante silêncio que aquela paz trazia. Como não mais vendiam seus delírios poéticos, os que sobreviveram passaram o resto de suas miseráveis vidas comendo pão de ontem acompanhado por café frio e amargo.

FIM

            Acabando a história aos bocejos, a pequena Rebeca fecha o pequeno livro, devolve-o carinhosamente à Zê, dá um beijo na testa de sua mãe – que em posição fetal já dormia há tempos – passando levemente a mão pelos seus cabelos e sai rumo ao seu quarto, sem apagar as luzes ou fechar a porta do quarto da mãe. Chegando a seu quarto exausta, deita-se e, finalmente, pega no sono. No dia seguinte Rebeca se levanta antes mesmo que o velho Sol. Se esticando, aos bocejos novamente, prepara cuidadosamente o café da manhã pra sua querida mãe que ainda dorme tranquila. Leva tudo numa simples bandeja metálica e acorda a mãe com um beijo estalando na testa e um bom dia sorridente.
           
           “Acorde mãezinha querida! Já é quarta feira e ainda temos pão. E café.”



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