25 de fevereiro de 2013

Inexplicavelmente


Por Bia Sz



Estava atrasada para a faculdade. Como conseguia não levantar com o som gritante do despertador de seu celular?! Já há muito tempo colocara como toque "Blinded in Chains", do Avenged Sevenfold, pois esperava que o bum inusitado da bateria logo nos primeiros acordes da música fossem capazes de jogá-la para fora da cama.

Mas lá estava ela, atrasada, suada e cheia de livros nas mãos. Odiava sair de casa sem tomar pelo menos uma ducha. Sentia-se suja - como de fato estava - e imaginava que todos soubessem que ela não havia tomado banho, ainda que seu último tivesse sido antes de dormir. Tinha TOC por limpeza pessoal.

O ponto de ônibus era a três quadras da sua casa. Duvidava que conseguiria chegar até lá a tempo de pegar o ônibus das seis e meia. Como se odiava por não conseguir levantar como uma pessoa normal! Apertou o passo e seguiu adiante, sem olhar para os lados, sonhando com um atraso inesperado do lotação.

Enquanto andava, ia revisando o trabalho que teria para apresentar. "O termo Cultura possui inúmeras concepções, dentre as quais engloba as diversas manifestações artísticas, folclóricas,  étnicas, inclusive educacionais, contidas em uma sociedade, como um conjunto de ideias, tradições e modos de vida, que são demonstra..."

Faltando menos de meia quadra, o ônibus entra na rua. E foi como se tudo fosse captado em slow motion:
Ela começou a correr, enquanto não perdia de vista o automóvel que estacionava. Atravessou a rua em disparada, sem notar a Ninja que se aproximava mais rápido do que o vento. Tudo o que ouviu foi um zumbido próximo e uma forte dor se apoderou de suas costas. Depois, o mundo caiu vertiginosamente e foi tomado pela escuridão da morte.

*-*-*

Morrer.
Se a morte fosse mesmo assim, nada do que diziam era verdade. Tudo estava escuro. Não havia luz no fim do túnel. Aliás, esse papo de túnel era furada. Ela não conseguia nem ver um palmo à sua frente. Tanto poderia haver um túnel, como um matagal, uma praia ou um desfile de escola de samba. No meio daquele  eclipse total, ela nem mesmo conseguia saber se estava mesmo ali, ou apenas sonhando um sonho dolorido e...preto.

A dor... agora ela sentia. Podia perceber que estava machucada, mas não podia dizer o quanto. Foi então que tomou consciência de que não poderia estar morta. Não. Na morte, não havia dor. Nada de purgatório,  umbral, ou essas besteiras. Ela não acreditava. Não havia dor depois da morte e isso era para ela seu maior consolo. E se conseguia perceber o corpo latejando, era porque ainda permanecia viva... sabe-se lá porquê.

Como que por mágica, a luz foi penetrando em seus olhos e aos poucos o silêncio do eclipse foi sendo substituído por vozes, bem ao longe, e um vulto foi tomando forma à sua frente. Seus olhos estavam embaçados, e ela percebia que havia lágrimas ainda molhadas nos cantos e em suas bochechas. Ia levando a mão aos olhos, mas algo tocou seu rosto mais rápido. Eram dedos. Delicados, macios. Eles limparam suavemente seus olhos e aos poucos o vulto à sua frente foi se tornando mais nítido. 

Era um rapaz de cabelos loiro-acobreados. Parecia um pouco mais velho que ela. Seus olhos ardiam de preocupação, isso ela conseguia perceber em meio ao caos em que se achava. E esses olhos... Tinham uma tonalidade arroxeada que ela imaginava que só Elizabeth Taylor poderia ter. Então ele perguntou, a voz trêmula:

- Olá... Você esta bem? Qual o seu nome..? Consegue me ouvir?
- Oi...Sim...Manue..lla...Sim... - ela disse, sem saber se ele entenderia que ela acabava de responder a todas as perguntas, prontamente, em ordem.
- Bem.. Menos mal. Consegue se mexer? Tenho a impressão de ter quebrado você ao meio... Perdoe-me, eu... Só não queria..
- Tudo bem... - Manuella o interrompeu, achando aquelas explicações desnecessárias - Estou bem... Ai!
Pensando bem, era como se um rolo compressor houvesse passado por sua cintura.
- Acho que... preciso de ajuda para levantar... Mas, ei... Quem é você...?
Ela sentiu que algo passava gentilmente por suas costas e a erguia com cuidado. A dor não estava mais tão forte, mas suas pernas estavam começando a ter câimbras. Ele a colocou sentada, ainda com as mãos apoiando suas costas. Mesmo agachado, ele parecia alto. Soltando um suspiro que parecia de alívio ele disse:
- Helel. Meu nome é Helel.



Então, ele se chamava Helel. Um nome diferente, peculiar, para não dizer o nome mais esquisito que Manuella já havia escutado em toda sua vida. Mas por outro lado, em meio às lágrimas e à dor, Helel parecia um dos homens mais bonitos que ela já havia visto.

Era loiro. E isso, sim, era estranho. Tinha uma certa tendência a gostar de morenos, simplesmente por achar que loiros não tinham muita graça. Seus cabelos aguados nem a faziam sentir borboletas no estômago.

Piscando com mais intensidade, para retirar os últimpos vestígios lacrimosos dos olhos, Manuella conseguiu dizer:

- Bem... Acho que devo lhe agradecer. Você parece ter salvo minha vida. Obrigada.

- É, eu realmente salvei você - disse Helel, ainda apoiando-a pela cintura - Mas parte da culpa por você estar assim é minha, também.

- Oi? Como é? - Manuella o encarou, achando que ele provavelmente tivesse batido com a cabeça mais forte do que ela.

- Se não fosse por eu ter entrado tão rápido na rua, você não teria se acidentado.

Encarando-o ela estava, encarando-o ela permaneceu. A única forma de suas palavras fazerem sentido era Helel ser o motorista da Ninja, mas se ele estivesse dirigindo, não conseguiria salvá-la sem se matar.

A história ficava sem sentido do mesmo jeito.

- Olha, Helel, não sei bem se enten...

Mas ela não conseguiu terminar a frase, pois nesse momento, uma ambulância chegava ao local para socorrê-la.

- Menina! O que faz de pé!? - uma socorrista exclamou, olhando furiosa para Helel - Foi você?!

- Ela está bem - Helel disse, e Manuella não soube explicar, mas a socorrista pareceu acreditar no que ele dizia.

- Ainda assim, vamos levá-la.

- Estou bem - Manuella concordou - Acho que se eu for para casa e me deitar, vou melhorar bem rápido (Adeus trabalho de faculdade, mesmo...).

- Eu fico com ela, se ela permitir - Helel disse, e para sua própria surpresa, Manuella se viu assentindo.

- Nesse caso, dou-lhes uma carona até lá - disse a socorrista, já os empurrando para dentro da ambulância.

Olhando rapidamente ao redor, Manuella não conseguiu visualizar a Ninja em lugar nenhum.

Enquanto faziam o pequeno percurso até o prédio de Manuella, a socorrista e mais um enfermeiro fizeram uma checagem na garota, para verem se estava mesmo tudo bem. Estranhamente, tudo o que Manuela sentia era dor de cabeça e um pequeno incômodo na região lombar.

É. Ela era forte.

Ao chegar em seu apartamento, foi amparada pela socorrista e por Helel, que abriu a porta (como ele conseguira a chave?) e a colocou em sua cama. Seus livros também foram colocados em sua estante, delicadamente, o que ela muito agradecia. Depois de fazer um milhão de recomendações as quais Manuella sequer ouviu, a socorrista foi embora, deixando-a apenas com seu mais novo conhecido.

E, então, o silêncio. "Um silêncio em três partes", pensou ela, lembrando-se dos livros de Patrick Rothfuss. Ela riu, percebendo que não tinha sido uma boa ideia.

- Aaai! - ela exclamou, colocando as mãos nos quadris.

- Rir não é o melhor remédio, garanto - Helel disse com um sorrisinho, encaminhando-se para a janela.

Ele permaneceu ali por instantes infinitos, até que Manuella não aguentou mais.

- Está com medo de algo? Não acho que meu atropelador consiga chegar ao décimo segundo andar.

Ele a olhou surpreso, como se a visse pela primeira vez.

- Nunca duvide... Mas não, eu estava apenas conferindo a movimentação. Você deu sorte de não ter muita gente nas ruas a essa hora. Seria muito irritante ser importunada nessa situação.

- Dei sorte? Creio que dei muito azar. Nesse horário, nem pessoas nem carros aglomeram as ruas. Mesmo assim, consegui ser atropela...aaaaiiii!

Helel estava apertando os dedos contra a têmpora de Manuella, atitude que ela não entendia, e que doía muito.

- Pare com isso! Já! - ela exclamou, tentando - em vão - tirar as mãos dele de sua cabeça - Isso DÓI!

- Calma, você deveria relaxar... Só estou fazendo uma massagem que aprendi há muitos anos... Você vai ver, ficará bem melhor em alguns minutos.

Ainda contrariada, Manuella deixou-se levar pela massagem dolorida de Helel e fechou os olhos. Não acreditava na reviravolta do seu dia. Num momento, estava preocupada com o trabalho que teria para apresentar. No outro, estava preocupada em não deixar que um desconhecido a deixasse com sequelas na cabeça.

A vida é mesmo louca, pensou.

E Helel até que não tinha as mãos tão pesadas quanto achara a princípio.

Ele a salvara... E estava lhe fazendo massagem... Afinal, tinha que ser alguém legal... Ainda que com nome estranho...

...

Manuella acordou com o quarto numa penumbra só. Tateando à procura do abajur, encontrou o interruptor e o acionou. Seu quarto parecia um ambiente de filme de terror: escuro, frio, deserto...

Helel.

Ele não estava lá.

Levantando-se com cuidado, Manuella percebeu que não sentia mais tantas dores pelo corpo. Se aquilo tinha sido efeito da massagem de Helel, meu Deus, ela queria aquilo todos os dias!

Encaminhou-se até a cômoda e olhou as horas. Neste instante, o relógio badalou: seis da tarde.

Ela havia dormido por quase doze horas. Isso era mais assustador do que ser atropelada.

Foi então que ela viu sua pequena bandeja de inox em um canto da cômoda. Em cima dela, açúcar, um saquinho de chá de erva doce e uma chávena com água quente. Havia um papel dobrado por cima do açucareiro.

"Relaxe... Se acha que tem azar, creio que tenho muita sorte. H."


E da mesma forma como havia surgido, ele se ia.

Como fumaça.



2 comentários:

  1. Vai ficar parecido com o comentário que fiz no seu último texto, mas não me canso de notar traços marcantes em sua escrita: a facilidade de colocar feitios de sua vida pessoal e colocá-las tão facilmente em um ficção e ao mesmo tempo consegue nos instigar a ver a história passar diante dos nossos olhos, além de um gramática perfeitamente empregada.

    Me senti parte do texto quando distinguiu como seria a morte. Me fez ter criar várias variações de como seria na hora e depois da morte.

    Gosto de cores. Tomara que tenha uma cor diante dos meus olhos quando eles não conseguirem se abrir mais.

    Parabéns Bianca. Sempre!

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  2. Ah, obrigada!!!!
    Quando escrevemos, creio nao ser possivel deixar de lado nossas vivências. Mas tambem creio ser muito bom escrever coisas diferentes. Tento variar e usar das duas!!! :)
    A questao da morte foi uma parte que gostei muito de escrever, porque tem tanto espectos pessoais, quanto alheios na escrita.

    Quanto às cores, seria menos macabro se fosse colorido mesmo, nao acha? =P


    Obrigada,mais uma vez!!!

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