14 de abril de 2018

A Jornada (Parte II)


Quando Tom partiu, ninguém o entendeu.

Terminavam o ensino médio na mesma sala os quatro colegas: Carlos, Rick, Tom e Joel. Sem tanto entusiasmo e aflitos por não saberem o que esperar do mundo a partir dali, ouviam suas músicas favoritas nos seus fones de ouvido, cada um com o seu, enquanto não acabava a entediante aula de física.

Aos 17 todos eles, com exceção de Carlos, já trabalhavam na pequena cidade em que viviam. A escola já tinha se tornado um saco há bastante tempo. Além disso, os quatro já haviam se distanciado bastante desde o episódio na ponte.

Carlos estava se dedicando integralmente aos estudos para passar em uma universidade federal e orgulhar seus pais. Rick começou um namoro conturbado com Jéssica e se destaca no seu emprego como mecânico na oficina do seu tio. Tom está aprendendo anatomia animal enquanto trabalha no açougue do seu Eustáquio e Joel faz de tudo para mostrar serviço como voluntário na igreja do centro, além de trabalhar na fábrica de reciclagem.

Reunidos novamente para uma das últimas festas da turma antes da formatura, a jornada continua. Ao juntar os quatro num canto, Carlos esboça uma comemoração:

- Aqui é terceirão, CARAAALHOO!

Joel responde com ironia em um grito baixo, sem empolgação e pra dentro:

- AÊeee! U-H-U-L

Todos riem e começam a conversar.

Enquanto todos escondem a ansiedade na forma de expectativa por mudar de cidade e finalmente entrar numa faculdade, Tom observa a cada um com um olhar de falcão. Até que, voando no assunto, é surpreendido por uma pergunta do Carlos seguida de um abraço e puxão pelo ombro. Nessa hora Tom acorda de sua análise minuciosa do mundo e diz:

- Vocês são foda! Bora chapar!

Todos com o copo na mão, inicia-se ali um primeiro ato de despedida.

Carlos observava com um olhar triste toda aquela festividade. Estava feliz, claro, com o término do ensino médio que se aproximava, mas sentia um grande aperto ao pensar que iria se distanciar dos seus amigos a quem tanto valorizava e ainda mais de Tom, seu velho e maior amigo. Nem gostava de pensar tanto nisso, mas era inevitável.

Joel também observava, mas por outro ângulo. Prestava atenção na hipocrisia das pessoas que se atacavam durante o ano e ali naquele momento se abraçavam. Observava alguns detalhes de como os professores ali presentes eram hipócritas ao reprimir a tagarelice dos alunos em sala de aula e falar tanto pelos cotovelos na festa. Joel passou a noite inteira prestando atenção nestes detalhes e só conseguiu se enfurecer.

Tom bebeu bastante. Ele observava a si mesmo como um estrangeiro e cada vez que se enxergava estranho dava mais um gole. E a cada gole ele parecia mais e mais estranho. Parecia querer fugir daquela situação e às vezes parecida nem mesmo querer estar ali presente. Já se via escalando montes mais altos e mais desafiadores.

Rick, por sua vez, ficou a festa inteira vidrado em Jéssica e nas pessoas das quais ela se aproximava. Até leitura labial ele fez. Apesar de um belo tipo físico e de ótima reputação entre as garotas da escola, Rick tinha uma autoestima baixa devido a problemas e traumas com seus pais. O que não era o caso de Jéssica. Extremamente narcisista, ela esbanjava um decote enorme em seu vestido vermelho e desfilava de salto pra lá e pra cá. Rick só observava seus passos, mas não o seu olhar.

Tom nunca contou pra ninguém além de Carlos a sua atração pela bela Jéssica. Apesar de parecer apenas um encanto puramente sexual como o que todos os garotos tinham por ela, Tom sentia que ali havia uma garota que pedia por socorro e que não queria aceitar ser um mero objeto de uso e desejo carnal. Desse modo, não conseguia desviar o olhar para a face da bela garota. E ela o retribuía, às vezes, com olhares provocantes e risos disfarçados.

Sem ligar para o que Rick pensaria, Tom, agora sob o efeito do álcool, fixava o olhar na garota e tentava decifrar o que nele havia de tão enigmático. Sorte a dele que Rick nem percebeu, pois estava ocupado olhando e desejando as amigas da namorada que se exibiam para ele como cães para adoção numa vitrine.

A noite avançou, os professores foram embora e ficaram os quatro amigos, Jéssica, a anfitriã e uns dois ou três colegas. A bebida tinha acabado e o som já estava tocando músicas bregas que ninguém gostava.

Rick logo partiu e, apesar de quererem ficar, o acompanharam Jéssica e Joel.

Carlos, já bêbado, voltou-se para Tom, mais bêbado ainda, e disse:

- Cara, não acredito que isso tá acabando!

Em tom provocativo e irônico, Tom questiona:

- Isso o que, cara?

Carlos sorri com o canto da boca. Depois olha pro céu e murmura:

- Será que viveremos isso novamente?

Tom afirma:

- Se um dia acontecer de novo quero que esteja ao meu lado, brother!

Por pouco Carlos não cai aos prantos. Ele sabia que seria um dos últimos momentos em que teria o grande amigo tão próximo.

Tom dá o último gole no Rum quente, se despede de Carlos e vai embora com as mãos no bolso da jaqueta.

Tom não apareceu em nenhuma das festas posteriores e nem mesmo na festa de formatura.

Carlos se deitou pensativo, olhando para o teto. Ele só conseguia pensar em quando aquela noite iria se repetir.

Tom se deitou igualmente satisfeito e, também olhado para o teto, ele só conseguia pensar nos seus próximos passos longe dali.

Exaustos, adormeceram com um sorriso no rosto. Então mais um dia teve fim, mas a jornada mal havia começado.



3 de janeiro de 2018

Flautista

A vida é um sopro. Uma brisa pequena, constante e quente no início... forte e radiante no meio.... fria e dispersa no fim.

Sempre que você se ilude de que é você quem dá as cartas ela vira o jogo e embaralha tudo novamente. O sabor de uma pequena vitória pode cegar até o mais esperto dos jogadores, mas nada muda o fato de que estamos perdendo, dia após dia, a disputa com a nossa vida.

A cada respiração ela fica mais curta e todos tentamos não pensar nisso porque não queremos estragar a ilusão de que estamos no controle.

O tempo passa depressa e leva consigo todas as vitórias ilusórias, deixando apenas as marcas, cicatrizes e lembranças de quem fomos um dia. A cada dia somos pessoas diferentes. Cada tropeço, cada acerto, cada sorriso e cada gota de lágrima transforma quem somos de modo irreversível.

Porém, todos os dias temos novas oportunidades para reparar ou amenizar erros do passado e, mais que isso, aprender e se apoiar neles para tomar novas e melhores atitudes. Temos tempo também para contemplar e agradecer pelo novo ser que acordou e que pode sim ser melhor que o ser que foi dormir ontem.

É engraçado olhar pra dentro de si nos momentos de desespero e observar o quão frágil é cada um de nós e o quão duro é o caminho de cada ser humano. Cada um reage de acordo com a sua essência e com aquilo que acredita.

Após cada queda nasce um ser mais vivo do que antes, porque ao se levantar a vida te encara de frente, e não há aquele que não tenha medo. E o medo e a dor também nos fazem mais vivos. De pé novamente a gente junta os cacos e volta a andar.

A noção de que o sopro vai se desfazer a qualquer momento nos ajuda a nortear cada passo dado, bem como todo o aprendizado com os erros e acertos. Assim, quando nos sentimos completos e cheios de vida através de experiências boas e ruins, podemos pensar na utilidade desse sopro e no seu propósito.

Alguns o direcionam para apagar velas, outros para velejar. Alguns sopros tocam de leve a pessoa amada e outros a arrasam como furacões. Alguns aceleram o giro do globo enquanto outros sopram ao contrário. O fato é que todos eles vão se esfriar e desaparecer, mas nada deve ser desesperador quando nos sentimos completos.

A vida é um sopro e, se você está respirando, já tem motivos de sobra pra agradecer ao flautista.



Aponte

Me diga como você tem certeza
Se está buscando ou está fugindo
Se está miando ou está rugindo
Enquanto põe as cartas na mesa

Me diga como você saberia
Se o sorriso era falso ou verdadeiro
Se seria amor ou só passageiro
Sem arriscar uma travessia

Me explique o que seria da vida
Se toda flecha acertasse o alvo
Se todo injustiçado fosse salvo
Se alguma ordem fosse mantida

Me aponte então o melhor caminho
Se não aquele em que sigo sozinho
Me mostre apenas algum sentido
Na árdua rota que tem seguido
Me aponte no mapa um X
E na história um final feliz

Me encontre e não se despeça
Pois nesta vida não me interessa
Se é chegada ou se é partida
Desde que a ponte seja mantida
E que eu aprenda que a cada dia
Preciso ousar novas travessias