3 de agosto de 2015

O anjo


O ônibus já estava atrasado há 17 minutos e trinta e seis segundos. Trinta e sete. Não que eu fosse alguém com TOC e contasse minutos e segundos das coisas, mas havia um relógio de rua bem à minha frente, o que me permitia a regalia de contar até mesmo os milésimos, se quisesse.

Durante os dez primeiros minutos de atraso, estava irritado. Não havia espaço suficiente no banco para a espera e eu tive que me contentar em me apoiar no poste. Essa deveria ser uma prática proibida pela vigilância sanitária, aliás. Refiro-me a deixar os postes sem uma linha de proteção que evite o contato. Na grande maioria das vezes, estão repletos de melecas, catarros, chicletes ou outras gosmas de procedência incerta e que você só percebe a existência quando elas passam a incrementar a sua vestimenta. Isso porque nem é muito preciso falar sobre o cheiro de urina velha, canina, humana, ou sabe-se lá de onde, que transforma o mastro em banheiro público. São tantos inconvenientes que às vezes seria mais fácil proibirem os postes. Aquele, contudo, estava razoavelmente limpo, então esperei.

Já fazia quase cinco minutos que eu consegui um lugar para me sentar no ponto de ônibus, o que me fez relaxar quanto à demora. Não adiantava me irritar, xingar mentalmente o motorista, a mãe dele ou até mesmo aquele passageiro irritante que provavelmente ficou discutindo com o cobrador sobre o aumento da tarifa, alegando não saber da mudança e se recusando a pagar o novo preço e, via de consequência, atrasando a saída do ônibus. O único movimento que eu podia fazer era ficar quieto, talvez pegar o livro dentro da mochila e aguardar meu transporte.

Na verdade, eu não tinha pressa em voltar. Tudo o que eu queria era prolongar ao máximo  minha chegada em casa. Perguntas e mais perguntas, gritos, desconfianças, intrigas e insinuações eram uma constância tão irritante que aos poucos vinham se tornando como um pernilongo em dia de verão. Era inverno, mas o inferno em casa era tão forte que eu sentia o calor há quilômetros de distância.

O relógio anunciou 19 minutos e dois segundos de atraso quando o ônibus finalmente chegou. Levantei-me depressa e por uma questão de reflexo não trombei com uma moça que subia as escadas. Balbuciei um pedido de desculpas e ela retrucou com um ligeiro sorriso uma resposta.

Dentro do ônibus, contei sete pessoas, incluindo cobrador e motorista, e eles todos pareciam estar conversando sobre um mesmo assunto. Deduzi que fosse algo relacionado ao passageiro chato que brigou com o cobrador e desejei que algum dos presentes o tivesse mandado lá pra casa. 

Ri desse pensamento sórdido e me sentei. Estava cansado. Puxava de dentro da mochila meu A vida como ela é, quando notei que ela sentava ao meu lado. A moça em quem quase trombei.

Ela notou meu livro e perguntou:

- Já leu algum dos contos?

- Alguns - eu disse, olhando-a atentamente pela primeira vez. Tinha os olhos castanhos, amendoados, e um pouco de sardas no nariz - Estou estudando opções para uma montagem.

- Ah! É ator?

- Diretor. E roteirista.

Ela sorriu, um sorriso bem mais sincero que aquele primeiro.

- Sou atriz. E gosto muito de Nelson Rodrigues.

- Acho que é meio impossível não gostar - eu disse, pensando no que me esperava lá em casa - Ele transforma a realidade da ficção em uma fição bem próxima da realidade. Para mim, bem convincente.

- É engraçado como me sinto bem com suas insinuações e provocações, sem muitos rodeios. Me sinto bem viva ao fazer alguma das suas personagens!

Pensei que fôssemos conversar mais sobre nosso mundo artístico em comum, mas ela simplesmente puxou os fones de ouvido e eu entendi o recado. Não me importei muito. Acho que, no fundo, eu continuaria o papo por mero respeito e ligeiro remorso de a ter quase jogado no chão.

Tornei a guardar o livro na mochila e fechei os olhos. Minhas pálpebras doíam a cada solavanco que o ônibus dava. Eu gostava de andar de ônibus. Não gostava era dos buracos.

Devo ter adormecido por um tempo razoável, ou foi o que senti, pois acordei sobressaltado e dei de cara com aqueles olhos amendoados, a menos distância de mim do que jamais estive de uma desconhecida.

- Desculpe se te assustei! - ela disse, se afastando abruptamente - É que por um momento me senti tentada a tocar sua cicatriz. Que bobagem!

Meus dedos instintivamente tocaram a minha bochecha, onde havia um pequeno corte, agora quase imperceptível. Já fazia muito tempo, mas as lembranças eram mais marcantes do que a própria cicatriz.

- Não, não se preocupe. Só me assustei com medo de ter perdido o ponto.

Ela concordou, meio envergonhada, e olhou para frente. Fiz o mesmo, mas sentindo o calor ofegante e encabulado que emanava do corpo dela. Tornei a me virar para seu lado e perguntei:

- Você está em cartaz?

Ele tornou a me olhar, parecendo feliz por eu não ter estendido o assunto da cicatriz.

- Sim! Estou apresentando uma peça no Teatro do Parque Municipal. Escrevi o roteiro. Eu e meu noivo.

- Certo, me passe os dados. Gostaria de assistir.

Trocamos informações e contatos e conversamos algumas banalidades depois. Ela tinha muitos conhecimentos sobre teóricos e críticos teatrais, alguns cinematográficos, e senti que poderíamos conversar por horas a fio. Por sua desenvoltura nos assuntos, imaginei que seria realmente uma boa atriz.

O ônibus parou e notei ser o meu ponto. Havia chegado muito mais depressa do que eu queria, agora por mais um motivo.

Despedi-me dela rapidamente e desci do ônibus, tomando no rosto um vento gelado e cortante. Toquei instintivamente a cicatriz e lembrei-me dos olhos dela, tão colados em mim que poderiam me beijar com os cílios, se quisessem. Não questionei o que a fez querer tocar meu rosto, ou se essa realmente era a verdade por trás da sua aproximação. Apenas guardei para mim o momento.

Voltando para casa, a passos lentos e quase de caranguejo, não pude deixar de pensar que, de forma mais realista e concreta, ela foi a minha dama do lotação.

Imagem: http://camilead.files.wordpress.com/2010/06/rua.jpg

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