30 de março de 2013

O Psicopata



Parte I - O Velho Mundo

          Era um cara qualquer. Não muito jovem a ponto de não saber o que queria da vida, nem experiente o suficiente pra conhecer o mundo ao seu redor. A única diferença perceptível entre ele e os demais era o fato de não ser nada sociável. Tinha seu intransponível mundo particular, que na verdade não era característica exclusiva sua, ele apenas estava velho demais para ainda guardar as chaves da porta entre dois mundos da qual somente o próprio tinha acesso, mas nunca tivera a ousadia e a vontade necessária para enxergar e sentir o belo dia lá fora. Bela era a vida, pelo menos até o momento em que botou os pés para fora do seu universo particular. Pelo menos até o momento em que suas pupilas se dilataram ao extremo e seus olhos engoliram todo o espantado rosto. Um absurdo.

Parte II – Descobertas

          Não se sabe ao certo qual a motivação para tirar a chave do bolso e botar o cabelo contra o vento que soprava lá fora, mas estava, enfim, no mundo novo. Num primeiro momento apenas observava e analisava de longe, porém minuciosamente. Ainda sem entender muita coisa, apenas seguia alguns passos na areia. Obedecia a certos costumes que na realidade não eram exatamente seus, certos rituais que não pareciam normais, seitas estranhas com entidades que não eram daquele mundo e muito menos do seu velho casulo. Começou então a se arriscar mais e seguir pessoas de perto. De início, apenas pessoas normais. Quase como uma sombra, quase invisível, intangível e imperceptível. Estava aprendendo da pior maneira, descobrindo as crateras e abismos desse mundo tão distinto do seu simples, monocromático e unilateral mundo. Eram constantes as explosões em dor na sua cabeça, uma tortura sem fim, sem fonte ou início que fosse explicável. Só conseguia certo alívio ao se camuflar e continuar a seguir.
          Seguir. O tempo e a repetição traziam o tédio. Nada de novo é o que o faz buscar o novo. Passou a seguir gente grande, gente esperta. Agora todos sabiam quem ele seguia e quais seriam seus próximos passos, embora ninguém parecesse se importar muito, pois ele estava apenas explorando e... seguindo. Perceptivo como sempre, observou que muitos já haviam sido condenados por toda uma vida, muitas vezes ao sofrimento eterno, apenas por simplesmente seguir, assim como ele estava a fazer mesmo que sem saber o porquê. Percebeu também que muitos, muitos mesmo, não eram tão perceptivos quanto ele. Um absurdo.

Parte III - Dor, Sede E Vício

          As dores de cabeça eram cada vez mais insuportáveis e frequentes, chegando ao ponto de obrigá-lo a passar noites e mais noites em claro a surtar. Seu mundo nunca mais voltaria a ser o mesmo, nem mesmo parecido com o que era antes, muito menos o seu cérebro. Aquele sonho imaginado através da parede tempos atrás, quem diria, viria a se tornar um frequente e sangrento pesadelo na grande obscuridade da realidade entre dois mundos não tão distantes, mas completamente distintos. Pode aguentar por muito tempo as dores de cabeça mas não foi capaz de evitar ter de remediá-las. Algo na sua inflamada mente lhe dizia, logo após os momentos de tormenta, que só havia um modo anestesiar aquela tortura a ponto de salvar-lhe de uma morte lenta e certeira. Haveria de escolher seu primeiro alvo mas não fazia a mínima ideia de como fazer isso e nem mesmo sabia como se aproximar sem causar espanto ou medo, pois nunca havia saído das sombras.
          Mais uma vez começou pelos normais. Uma, duas, dez. Pessoas vazias molhavam sua sede de alívio assim como um quase beijo, como um leve encostar de lábios acende a libido. Nunca encontrava perguntas suficientes ao destrinchar suas vítimas, somente inúteis verdades. Ambos, pessoas e verdades, eram descartados. Aquilo não era nada saudável, mas era viciante por mais frustrante que fosse. Queria cada vez mais e mais... e depois mais um pouco. Não se mete o dedo no bolo sem a intenção e sem o desejo de saboreá-lo em cada centímetro. Haveria de se saciar. Mais uma vez se via diante dos grandes, mas dessa vez eram muitos, muito mais do que acreditava que existissem. Isso era só mais uma das coisas que a grande parte dos indivíduos, nem um pouco coletivos, sempre ignoravam. Um absurdo.

Parte IV - Dissecando

          Os grandes, que não lhe pareciam novos, eram por dentro, para sua surpresa e frustração, tão vazios quanto os outros, muitas vezes até mais frágeis, e algumas vezes podres ou com órgãos quase petrificados, sem qualquer uso há décadas. Alguns órgãos, como o cérebro, tinham sempre cores distintas, mas na maioria dos que ele tinha analisado até agora a gama de cores não variava para nada além de alguns tons de cinza. Um, dois, dezenas. Nada. Cansado e com nojo de só encontrar carcaças vazias, cheias de verdades, traçou como alvo os grandes ignorados, os pobres desesperados. Um, dois, três...

Parte V - A Pergunta No Espelho

          Finalmente uma gama de cores completa onde encontraria toda cor que quisesse. O suficiente, o essencial. As dores foram diminuindo a intensidade pouco a pouco, e embora nunca tenham parado, já não incomodam mais. Pelo contrário, elas se tornaram um indicador de que se estava no caminho certo. Sempre esteve, aliás. Até que enfim entendera. Nunca havia se olhado no espelho e acabara de perceber no reflexo do cristal que ele próprio era demasiado grande. Percebera também que foram as perguntas que fez após transitar entre os mundos que o tinham tornado assim. Por final, se esqueceu quase que por completo do cara que se escondia atrás do muro, restando apenas uma breve lembrança do que imaginava que encontraria deste lado.
          Viu-se maior no cristal, mais forte, e ao contrário do que imaginava, enxergou atrás de si um mundo completamente distorcido, de pernas e cabeça pra baixo, com pessoas vazias, comercializáveis e descartáveis. As cidades em chamas com alguns jogando gasolina e outros, por sua vez, aplaudindo e derretendo na multidão, como quem aplaude o toureiro e também a tourada a mirar em sua direção. Ao invés de cores, ritmos e sabores, atrás do muro havia um mundo completamente diferente, de regras informais, desconhecidas e um tanto quanto violentas. Aliás, bastante violentas, escondidas em várias formas, de forma a serem até mesmo... aplaudidas. Mundo de codinome louco e entorpecente. Uma tortura. Um absurdo. Um psicopata.

5 comentários:

  1. Enquanto eu lia seu texto, todas as minhas aulas de psicologia vieram à tona. Sobre a personalidade dos loucos, e em especial, sobre a personalidade dos psicopatas. Enquanto eu estudava, o fascínio que os psicopatas causavam, não só em mim, mas em todos da minha turma e também em minha professora, era maior do que o fascínio por todos os demais seres objeto de estudo. E isso porque o psicopata não se encaixa em lugar nenhum. Não é louco, porque a loucura exige um grau de insensatez, a criação de um mundo próprio em que a realidade do louco não bate com a nossa própria realidade, e seus atos fazem sentido no seu mundo, não no nosso. O psicopata tem consciência dos seus atos. Não mata um homem por achar que ele é um leão, ou um bicho qualquer. Não mata alguém por achar que aquela pessoa é um espírito maligno capaz de lhe fazer mal. Ele mata mulheres loiras de cabelos curtos porque não gosta delas, simplesmente. Planeja, arquiteta... faz tudo sabendo que assim está agindo. E por isso, claro, não pode ser também considerado normal,como qualquer outra pessoa.
    Ao ler o texto, fiquei pensando no título o tempo todo, e pensando se o personagem seria mesmo um psicopata ou um dos diversos tipos de louco classificáveis de acordo com a ciência.

    Explodi de surpresa ao descobrir que eu estava analisando o psicopata errado! Não é o personagem...!

    Simplesmente fantástico, especialmente o final inesperado!

    Um dos melhores textos que você já fez, Rafael. Aliás, acho que o melhor, na minha opinião.

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    1. E eu explodi em felicidade ao ler seu comentário. O que eu queria alcançar com o texto foi exatamente o que aconteceu contigo. Melhor impossível. Também já estudei psicologia e talvez por isso eu tenha descrito bem o comportamento de um psicopata. Entendo bem isso.
      Acredito que este foi o meu texto que tenha cumprido com 100% do seu dever sem que eu precisasse explicá-lo, e estou muito, muito feliz com isso.


      Muito obrigado por me proporcionar isso, Bia. (=

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    2. Aaah, mas cumpriu mesmo!
      E, veja, acho que sou uma leitora um pouquinho perceptiva,também, hihihi.
      Sério, esse seu texto me deixou de boca aberta por alguns instantes.
      Muito bom isso!

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  2. Aaaaaah!

    Sem contar que a divisão do seu texto ficou simplesmente foda.

    Agora, chega de elogios...

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    1. Mais uma das coisas que funcionaram no texto.
      Não sabe o quanto tô feliz por saber que ele cumpriu por completo sua missão. Hehe. Muito obrigado.

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