22 de março de 2013

Magia Branca

   Por Bia de SouZa



A cortina estava fechada. Ela ainda tinha alguns segundos para respirar e ser ela mesma. Depois de tanto tempo, o frio na barriga se tornara seu melhor amigo, a companhia mais fiel e envolvente. Praticamente, tinha nele seu amante mais confiável.
  60 segundos. A luzinha vermelha anunciando os instantes anteriores à abertura das cortinas de veludo reluzia ao seu lado. Como odiava aquela luzinha. Ofuscava sua vista mais do que os holofotes ao entrar em cena. Provavelmente, tudo não passasse de mera implicância. Implicância com a luz vermelha.

   5 segundos. Sentiu o ar mudar de densidade e, ao abrir os olhos, viu milhares de olhos famintos ao seu redor, sedentos por um movimento dela.
   Aproximou-se do centro do palco. Apenas o ecoar dos seus saltos extremamente finos eram ouvidos. Nenhuma mosca, nenhum grilo, nenhum suspiro. Nada. Apenas seus saltos agulha.
   Parou ao lado do mastro e, num movimento rápido e aveludado, despiu-se de sua capa de couro, sentindo na pele semi-nua o movimento do vento, reiniciado pelos suspiros prendidos da plateia atenta.
   Música.
   Tudo fluía ao som rítmico da batida sensual, os movimentos precisos de uma dança quente, provocante e rotineira.
   Ela executava toda a sua performance com maestria e destreza, percebendo na multidão que a rondava centenas de olhos famintos conhecidos.
   Ela subia e descia no mastro. Seus saltos já não mais ecoavam, apenas serviam como molas propulsoras para seus movimentos mais ousados, momento em que invertia seu campo de visão e virava do avesso o mundo do seu séquito de vampiros. Sedentos por sangue.
   Os seus vampiros. Anjos caídos; Seres Noturnos.
   Tudo era um ritual. A cada sétimo dia da semana, ela se apresentava, como uma bruxa invocando seus espíritos, sendo observada de perto por seus discípulos, bem educados. Tudo era cronometradamente esperado.
   Suspiros no momento um. Risos no momento dois. Gemidos no três. Palmas no quatro. Novo silêncio no quinto ato.
   Ciclo vicioso e viciante, que a fazia Mestre na Arte em que se iniciara.
   E naquela noite, como num romance, num filme ou novela, havia um novo par de olhos.
   Não famintos.
   Concentrados. Curiosos.
   Femininos.
   O ar novamente mudou de densidade. Mas dessa vez, pareceu ralear. Ela não estava acostumada a olhos assim.
   Excitação.
   Pulso acelerado.
   Fluxo sanguíneo descontroladamente ativo.
   Ela desceu as escadas do palco, caminhando lenta e felinamente, diante da novidade.
   Os olhos estavam a alguns passos de distância, compenetrados e - quem diria? - divertidos.
   Um divertimento quase infantil.
   Porque eram olhos de uma quase criança.
   Quase.
   Bem à sua frente estava a constatação de que as aparências são enganadoras.
   Os demais olhos famintos estavam vidrados às costas dela, curiosos frente ao novo. Um passo fora do comum causava erupções desestruturantes.
   Aqueles olhos femininos vinham acompanhados de cabelos castanhos, olhos amendoados e boca rosada. Corpo esguio, fino e coberto por um vestido de seda preto, na altura dos joelhos. Sapatilhas cor de chumbo lhe cobriam os pés pálidos como a lua.
   Ali estava uma imagem contrastante com os cabelos vermelhos curtos e pele bronzeada dela.
   Como uma cobra antes do bote, ela se agachou em frente àqueles olhos, sabendo que os gemidos de plano de fundo se sobressairiam à música ambiente.
   Delicada como uma pluma, ela subiu-lhe o vestido, deixando os joelhos e parte das coxas à mostra. Afastando-lhe gentilmente uma perna da outra, ela apoiou um dos seus pés na cadeira e olhando aqueles olhos profundamente, sorriu.
   Foi retribuída com um sorriso travesso, seguido por uma mordida nos lábios. Achando aquilo divertido, ela aproximou-se mais e deixou que seus próprios lábios roçassem-lhe a pele, ao mesmo tempo em que, ajeitando-se com carinho, sentava-lhe no colo.

   Nunca havia contato físico em suas apresentações.
   Assim como não havia olhos femininos.
   Percebeu que se tocavam delicadamente, com certo receio e ousadia.
   Os vampiros ao redor não ousavam interromper a mais nova parte ritualística. Duas bruxas geravam mais faíscas, portanto, mais combustão.
   Ela pôs-se de pé e rodeou-lhe a cadeira. Não fora seguida pelos olhos femininos, que permaneciam onde estavam.
   Deslizando-lhe os braços por sobre os ombros, tocou-lhe o busto, sentindo-o arfar.
   Ela, mais uma vez, sorriu e, pela primeira vez, olhou ao redor.
   Olhos famintos, sedentos, excitados e hipnotizados. O poder do desconhecido era muito forte.
   Caminhou em direção ao palco, consciente de seu movimento, e subiu num salto único. Agarrou-se ao mastro, girando, girando, girando... e parando no solo gelado, que arrepiava sua pele.
   Viu a luz azulada ir se esvaindo, num fluxo lento e lânguido, e o momento quatro finalmente chegar.
   Não houve quinto ato naquela noite.
   As cortinas se fecharam à frente dela, e ela conseguiu ouvir seu próprio gemido.
   Uma noite memorável, poderia dizer.
   Especialmente por saber que aqueles olhos infantis seriam revistos. Brevemente.
   Lá estava seu amante mais confiável novamente a envolvê-la.
   Sorriu.
   Cerimônias ritualísticas mudavam com a introdução de novos feitiços.

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