24 de março de 2014

Um conto de momento




Ele caiu no buraco. Viu-se descendo, descendo, por um túnel escuro e sem volta. Sem noção do tempo, do espaço e da realidade.

Bateu com o corpo em um chão mole, e ao invés de dor, sentiu-se relaxar. Levantou-se assustado e viu que se encontrava no dorso de um bicho enorme, que subia e descia ritmicamente. Algo esverdeado (ou seria azul?). A iluminação quase inexistente o fazia franzir o cenho à procura de uma resposta. Caminhou cuidadosamente pelo corpo da criatura, em direção à pequena fonte de luz que ele achava existir próximo a uma das suas extremidades. Ao se aproximar, perdeu o fôlego.


Estava encarando uma lagarta enorme, que dormia profundamente. Sua respiração formava uma fumaça fraca, e ele agora percebia ser ela a fonte de luz que havia notado. Desceu cuidadosamente do corpo da lagarta e sentiu os pés baterem contra um chão áspero, que ele não conseguia ver. Sem fazer barulho, afastou-se do bicho, na tentativa de encontrar uma saída.

Tateou no breu por um tempo que não conseguia cronometrar, e num súbito movimento, sentiu sua mão encostar em um objeto pontiagudo, bem à sua frente. Passando os dedos por ele, deduziu ser uma maçaneta, embora não conseguisse entender onde estava a porta que a acompanhava. Moveu a maçaneta para baixo e, ao invés de ouvir o clique da suposta porta se abrir, sentiu que algo gosmento encostava em seu pescoço. Virando-se para trás num movimento súbito, deu de cara com a cara enorme e verde-azul da lagarta gigante.

- Pensa em sair daqui? - ela perguntou, e ele pulou de susto. A lagarta falava!

- Sim, quero achar a saída. Caí e não sei como voltar.

Ele sentiu que ela ria, mas não sabia explicar como sabia disso. Aquela lagarta enorme, encarando-o e rindo. Tudo era tão estranho... E ele não podia sair correndo. Nem sabia onde estava.

- Que bom que quer voltar - ela tornou a dizer, e ele sentiu a sua parte gosmenta deslizar do seu pescoço para o quadril.

- Mas o qu..?

- Shhhhhhh - a lagarta sussurrou. Num instante, colocou em suas mãos uma espécie de chave - Você deveria testar a chave na fechadura. Girar a maçaneta não adiantará, por si só.

Ele a encarou de olhos arregalados, sabendo que a lagarta tinha acabado de tirar de dentro do seu bolso uma chave para abrir uma fechadura, em um lugar que ele nem mesmo conhecia.

- Tudo bem... Vou tentar.

Tateou novamente, à procura da fechadura, e a encontrou com certa facilidade. Girou a chave dentro dela, três vezes no sentido horário e ouviu o conhecido clique.

- Acho que abriu - ele disse, mas quando se virou para agradecer à lagarta, ela já não se encontrava mais lá. Havia uma enorme mariposa luminescente onde ele supunha ser uma parede - Bem, de todo modo, obrigado!

Moveu a maçaneta e empurrou-a para frente. Ofuscou-se com o brilho que veio diretamente em seu rosto.

Demorou um tempo para se acostumar com a luz do ambiente. E quando finalmente enxergou, estava em seu jardim.

Tudo em seu devido lugar. As macieiras, a grande árvore velha, as flores coloridas, os coelhos e os cachorros, o berço...

Não. Aquele berço não fazia parte do jardim. Aproximou-se dele com cuidado, e se viu olhando para a mesma mariposa luminescente de segundos atrás.

Por instinto, voltou ao local onde havia aberto a porta misteriosa, mas não conseguia mais encontrá-la. Não sabia por onde havia chegado, pois não havia porta alguma. Nunca houve, ele sabia disso. Conhecia seu jardim.

Tornou a se aproximar do berço e, bem devagar, pegou a mariposa, colocando-a na palma da mão.

Encarou-a, vendo suas asas tremularem sutilmente. Ela era mesmo brilhante!

- Você... não vai falar nada comigo? - ele perguntou, sentindo-se no mesmo instante ridículo, por conversar com uma mariposa.

Ela não respondeu, apenas o encarou.

Ele entendeu que ela realmente não queria conversa.

Sentou-se debaixo de uma macieira e ficou por um bom tempo observando a mariposa. Ela havia diminuído, mas tinha certeza que era a mesma mariposa do buraco onde ele caíra. Não havia outra mariposa luminescente no mundo.

Enquanto a olhava, Nuvem, uma de suas poodles, se aproximou e colocou o focinho em seu colo, também observando a mariposa.

Eles ficaram ali, por um tempo não cronometrado, sentindo as vibrações da mariposa, o seu lento bater de asas.

- Nuvem, aquele berço pode ser sua casa agora - ele disse, e sentiu o pelo da cadela se eriçar - É bem bonito, como você.

Nuvem, no mesmo instante, sair correndo e pulou no berço, marcando-o como seu território.

Ele riu. Berços eram mesmo muito confortáveis.

Sentia seus olhos pesarem, e percebeu que estava com sono... Colocou a mariposa cuidadosamente na grama ao seu lado e fechou os olhos.

Sonhou que estava caindo, caindo... e novamente se achava no lugar onde tudo começou. Mas agora, sentiu o baque do seu corpo contra o chão, já que não havia mais lagarta gigante e fofa. Ela tinha virado mariposa luminescente, e estava em seu jardim.

Já sabendo que havia ali, em algum lugar, uma maçaneta, ele saiu à sua procura, já com a chave em mãos. Encontrou-a pouco tempo depois, sentindo-se aliviado.

Mas a chave não serviu. Ele tentou uma, duas, cinco vezes. Nada.

Suspirou, cansado. Precisava voltar para casa.

- Você quer mesmo voltar? 

A voz foi se aproximando, aos poucos, até que ele reconheceu a silhueta inconfundível de Nuvem.

- Nuvem? O que faz aqui? Aliás, desde quando você fala?

- Desde sempre. Você é que nunca se deu a chance de me escutar.

Nada mais soava estranho para ele, de forma que entendeu Nuvem como se a escutasse todos os dias.

- Quero voltar, sim. Não gosto deste lugar escuro. E agora, nem mesmo tenho a lagarta gigante para amenizar minha queda.

- A lagarta mudou - Nuvem disse, com os olhos brilhantes e verdes (ela sempre teve os olhos daquela cor?) - Você precisa mudar também. Se não, não sairá daqui.

- Eu só quero voltar para casa, Nuvem. E levar você comigo.

Ele viu a cadela sorrir, o que o fez sorrir em resposta. O sorriso de um cachorro é o mais belo sorriso existente. Nuvem se aproximou dele e tocou sua mão com o focinho. Estava quente.

- Pois abra os olhos.

- Mas eles não estão...

- Estão, sim. Ainda estão fechados. E você não está dormindo. Deixe de arranjar desculpas.

Ele respirou fundo. Sabia estar de olhos abertos, mas sabia estarem eles fechados, uma vez que se encontrava recostado debaixo da macieira, em seu jardim. Pensando nisso, encostou o indicador bem no meio da testa, pressionando o local e soltando-o rapidamente. Piscou.

Viu novamente seu jardim, cheio de macieiras, a grande árvore velha, as flores coloridas, os coelhos e os cachorros, o berço.

Tudo estava ali, no seu devido...

- Ai! - ele exclamou, quando uma maçã caiu bem em sua cabeça.

Ela rolou e parou onde deveria estar a mariposa verde-azul. Ela provavelmente deve ter voado, sem que ele percebesse.

Pegou a fruta e viu que ela era vermelha como sangue. Todas elas eram da mesma cor. Tudo ao seu redor se iluminava e coloria de maneira intensa e extremamente bela.

Agora, ele entendia o que Nuvem queria dizer com abrir os olhos. Tudo estava tão belo... ele agora percebia.

Foi até o berço e encontrou a cadela adormecida. Mais uma vez sorriu.

Balançando o berço para lá e para cá, ninou-a por um tempo não cronometrado. E sentiu, por um instante, que era iluminado pelo brilho incandescente daquela mariposa.


Por Bia de Souza.
Imagens: 

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