31 de dezembro de 2012

adeus,

por Jéfferson Veloso.


Em algum lugar do oriente médio, 21 de setembro de um dia qualquer da semana. Desperto-me de meu doce sono, no qual me arrependo de não conseguir controlar a vontade automática de acordar. Como qualquer ser humano normal que acaba de ter um lindo sonho, tento voltar a dormir para voltar aonde parei. Sem sucesso. Redireciono meus pensamentos à missão que me foi dada por pessoas que prezam pelo bem da sociedade ocidental: mirar e matar, sem pensar. Estou em um deserto que nem sei o nome, que fica próximo à zona de combate, no qual os inimigos insistem em chamar de casa. Montamos uma tática de invasão e está tudo marcado para ser realizado no período da tarde desse dia. Invasão surpresa, sempre funciona. Dá até mais adrenalina acertá-los quando não sabem o motivo, nem de onde, nem de quando.
Fui encarregado de colocar munição nas armas para o combate, marcado às 15:30 desse dia, que deve ser uma terça-feira, mas parece quinta. Pentes cheios nas MAC-10, .40 e MAVERICKs, e um pacote cheio de balas para a 44 que meu pai me deu de presente. Granadas de todas as espécies, e preparar mais dois Panzerfaust  que a tropa de reforço trouxe dois dias após nossa chegada. Tudo pronto.
Mais uma hora e partimos. Começo então a me concentrar no objetivo da missão: mirar e matar, sem pensar.
Mas... me pego pensando em você, Manuella. Você que, no fundo, sabe que eu não queria estar aqui. Você que me deseja a seu lado a todo momento, e que detesta o fato de eu estar aqui do outro lado do mundo destruindo vidas de uma nação para o suposto bem de nossa nação. Será esse o preço que se paga para haver a paz? Se for, ainda não estou me sentindo muito pacifista.
15:00. Todos os combatentes ficam à espera do início da missão. E eu fico pensando em você, enquanto olho a foto que me entregou no dia de minha partida. Nunca vou esquecer aquele beijo e o que me disse depois: "Quando olhar para o céu e perceber que o brilho de uma estrela for mais intenso que as outras, será a prova de que continuarei te amando. E cada brisa que lhe correr pelo corpo ao dia, será meu corpo te chamando para uma junção de prazer entre nós dois. Te amo." Penso todos os dias em cada palavra dita, e mais ainda quando sinto essas brisas ou vejo tal estrela. Será que você olha a mesma estrela que eu? Mesmo que não olhe, sei que estás a pensar em mim, pois estou fazendo o mesmo agora, enquanto olho para sua foto, na qual é a único objeto que tento manter conservado. Guardo sempre no bolso esquerdo do uniforme. Enquanto penso em você, nem vejo o tempo passar. Nem me lembro que estou vivo de verdade (se é que eu ainda esteja realmente). O tempo passa, mas eu bem queria passá-lo todo tempo a seu lado.
15:30. Operação em andamento. Partimos em direção à zona de combate, enquanto decidimos que a melhor forma para interceptar é atirando uma bomba no centro da cidade com a Panzer. E eu sou o encarregado de fazer isto.
Tudo parece estar movimentado no centro. Pela mira da arma, vejo centenas de pessoas, indo e vindo, com suas sacolas de compras de mercado. Parece ser uma feira. Ou pode ser algum bom evento, como toda cidade pequena sabe fazer. Mas tenho que direcionar meus pensamentos e dizer para mim mesmo que tudo se trata de uma zona de guerra onde cada sacola esteja guardando granadas, que em cada tenda tenha um estoque cheio de AK-47 e que cada pessoa seja um soldado treinado para matar sem piedade, o que lembra muito os soldados que fazem parte do meu pelotão.
Mira travada. Corpo firme para o impacto da arma. Um simples movimento de "venha cá" do meu dedo indicador da mão esquerda faz com o que o gatilho seja apertado, acionando impulso dentro da Panzer, fazendo com que cuspa a mesma bala que demorei 5 minutos para conseguir colocá-la na arma. Tudo tão rápido. Fecho meus olhos e a única coisa que faço é ouvir o estrondo da explosão misturando-se com os gritos amedrontados da população. Quando abro meus olhos, não consigo enxergar mais soldados. Só consigo ver monstros. Monstros sedentos de carne. Prontos para tirar a vida de qualquer um que não seja de sua amada nação. Olho para minhas mãos e percebo que não são mais as mãos de uma pessoa normal. Me tornei um monstro também. Não consigo colocar os pensamentos mais em ordem. O único impulso que me governa no momento é o de acompanhar o bando de monstros e fazer tudo o que eles estão fazendo, que é seguir a missão: mirar e matar, sem pensar.
Vidas e mais vidas vão sendo tiradas da pequena cidade. Os chamados 'inimigos' poderiam ser qualquer um.
Acabo fazendo uma história de vida para cada vítima de minha Maverick. A bala que uso para matá-los vira sua água de batismo (ou certidão de nascimento no cartório), o que me faz ter o direito de dar nomes.
Começo pela história de Alfred. Depois que vejo minha bala atravessar seu peito, imagino que, com seus 32 anos, ele poderia ser um daqueles comerciantes que ficam batendo de porta a porta, a fim de vender o seu produto revolucionário (qualquer produto se torna revolucionário na mão de um comerciante autônomo). Imagino que ele tenha dois filhos, um menino e uma menina, no qual nunca os deixaram passar fome, já que, com o salário de sua esposa e suas vendas, conseguem manter o sustento para sua casa. Mas isso não importa mais, pois existe uma bala em seu peito o impedindo de fazer suas vendas, contando que não terá mais vida para fazer isso. Adeus, Alfred.
Conheceremos então a história de Rosemary, 29 anos, dona de casa, mãe de filho único, e forçadamente casada com um dono de padaria a seis anos. Rose acordava todos os dias às 7 da manhã, colocava o leite para ferver enquanto prepara a mesa para o café-da-manhã. Enquanto o leite ferve, ela regava as plantinhas de sua varanda. Depois, colocava o leite na mesa do café-da-manhã, enquanto seu filho se aprontava para ir à escola. Logo após comerem, ela ia com seu filho até o portão e lhe dava um beijo de bom dia na testa. Então ela voltava para dentro de sua casa e começava os preparativos para a refeição da tarde. Vai ficar um pouco difícil fazer tudo isso agora que alojei uma bala em sua cabeça. Adeus, Rosemary.
É engraçado pensar que cada vida que está sendo tirada poderia tanto ter a chance de se tornar uma ameaça no futuro, quanto não tornar. Infelizmente, para nós, soldados, deixá-los vivos não é uma opção.
Meu estado de monstro começou a desaparecer quando me deparo com o pequeno Raphael, com seus singelos 12 anos. Antes de matá-lo, vi um brilho intenso em seus olhos, parecido com o brilho da estrela em que olho toda a noite pensando em você, Manuella. O pior parte é que não consegui evitar puxar o gatilho antes de voltar ao meu estado normal. Que mal um garotinho tão cheio de vida poderia representar à uma nação? O que me fez pensar que tenho o direito de arrancar-lhe a vida?
Mirar e matar, sem pensar.
Ficamos tão interessados em acabar como o terrorismo que nos tornamos os verdadeiros terroristas.
Não consegui criar uma vida para o pequeno Raphael. Simplesmente, coloquei minha vida dentro dele. Enquanto vejo o brilho de seus olhos se apagarem, devido ao projétil alojado no peito, imagino todas as minhas vontades, todos os meus sonhos de 12 anos sendo apagados junto com sua vida. Adeus, pequeno garoto, aproveite e levo tudo de bom que restou em mim.
Quando você está em guerra tudo ao seu redor vira conflito ao seu redor e dentro de você. Suas sensações, decisões, tudo. Chego a entrar em conflito com minha própria missão, o que me faz pensar e deixar de matar. Tudo começa a rodar e ficar confuso ao meu redor. Mas a sensação que estou tendo é prazerosa. Pois estou em tão completo estado de paz que nem reparo uma granada de mão explodir ao  meu lado.
A guerra só acaba quando a morte começa. E está acabando para mim.



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Se existe uma cor para caracterizar a paz que senti no decorrer de mais ou menos 30 segundos finais de vida,essa cor era azul. O azul de seus olhos, doce Manuella.
Você é meu ponto de paz. E a única sensação que posso sentir é do seu corpo junto ao meu, enquanto uma leve brisa passa por mim, já imóvel do tronco aos pés.
Não, não estou triste por estar morrendo. Estou feliz por saber que eu tive alguém a quem amar antes dizer "Sim, eu vou à guerra pela minha nação". Desde essa frase, me tornei um monstro de guerra insensível.
Espero que esta mensagem chegue à você, nem que seja em seus sonhos. Nem que seja daqui a 52 anos.
Adeus, Manuela.


PS.: Sabe a estrela com o brilho mais intenso? Serei eu.


Atenciosamente,
Um monstro apaixonado.


Meu corpo voltará como heroi de uma pátria na qual tive que pagar o preço de ser o vilão de outra nação.

7 comentários:

  1. Um monstro apaixonado como tantos outros, onde quase sempre a monstruosidade prevalece.
    Bom texto. (y)

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    1. Até mesmo os monstros podem ter sentimentos bons. :)
      Muito obrigado!

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  2. ...
    Não sei ao certo dizer, exatamente, o que me impactou tanto em seu texto...
    O fato é que chorei ao lê-lo e imaginei que essa estória poderia ser minha. Ou de alguém próximo a mim.
    Chorei...
    E agora penso que, realmente, uma estória é verdadeiramente boa quando me sinto parte dela.

    O de sempre: Parabéns, Jéfferson...
    Muito.

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    1. Foi por medo de causar impactos assim que não escrevia antes, Bianca. Desculpe se a fez chorar.


      E Muito obrigado pelos parabéns.

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    2. A escrita existe para ser impactante! Se assim não for, de que vale escrever? Considere meu choro como um grande elogio ao seu texto, meu querido... Você definitivamente merece todos os elogios por ele.

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    3. :') Sinto muito orgulho ao ler seus comentários. E milhares de outras coisas.

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    4. *-* rsrs! Pois é... essas outras coisas! Rs.
      Beijo, meu querido!
      Keep writing so well!

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